Advocacy e Pesquisa

Os Desafios da Câmara dos Deputados no PL das Fake News

07 jul de 2020, por OKBR

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Texto publicado originalmente no site da Coalizão Direitos na Rede.

Chegou à Câmara dos Deputados, depois de aprovação pelo Senado no último dia 30 de junho, o projeto que pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, e que ficou conhecido como o “PL das fake news”. Depois de cerca de dois meses de discussão, o texto aprovado trouxe diversas mudanças em relação à versão original do autor, senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Boa parte delas foi decorrente da interlocução e das reivindicações feitas – com muita dificuldade num contexto de pandemia e de funcionamento remoto do Parlamento – por organizações da sociedade civil, pela academia e pesquisadores/a do tema, por entidades internacionais de defesa de direitos humanos digitais e até pelos relatores da ONU e da OEA para a liberdade de expressão, que se manifestaram sobre o processo em curso no país.

Entre as preocupações acolhidas pelo relator, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), e retiradas do texto estão, por exemplo, a definição do conceito de “desinformação” e a obrigação de sua interpretação pelas redes sociais e serviços de mensageria e mudanças em leis penais do país. No primeiro caso, autor e relator do PL 2630/2- compreenderam os riscos que seriam impostos ao exercício da liberdade de expressão caso a lei se baseasse na definição única de um fenômeno extremamente complexo, em debate em todo o mundo, e na determinação de que seu combate devesse ser feito pelas plataformas digitais a partir da análise do conteúdo que circula nas redes.

A experiência internacional tem mostrado que, nos países onde o enfrentamento às chamadas “fake news” foi regulado a partir dessa equação, os casos de censura privada por parte das plataformas e também de autocensura por parte de jornalistas, ativistas e cidadãos em geral se multiplicaram. Daí a opção acertada, da versão que foi a voto no Senado, em focar o combate à desinformação em comportamentos e características de contas e perfis, e não no conteúdo que propagam. É fundamental que a Câmara dos Deputados siga neste sentido na versão do texto que irá a voto pelo plenário da Casa.

Em relação a mudanças em leis penais do país, o relator declarou uma opção por tratar do tema em um projeto a parte – que pode ser resultado, inclusive, da CPMI das fake news, presidida também pelo senador Coronel. Em uma das versões de seu relatório, o projeto chegou a contar com dez artigos de lei criando novos tipos penais ou aumentando penas para tipos já existentes. A proposta foi objeto de forte reação de dezenas de organizações de direitos humanos que atuam com o tema da justiça criminal, alertando para os riscos de se atingir o usuário comum de Internet a partir da tipificação de condutas genéricas e recorrentes nas redes e da possibilidade de criminalização de cidadãos por críticas políticas a autoridades e poderosos.

O pleito dessas organizações e de diversos defensores de direitos humanos, juristas e pesquisadores do campo do Direito, incluindo especialistas da Ordem dos Advogados do Brasil, foi de garantia de um amplo debate sobre os impactos de tais medidas – que quase foram a voto – antes da votação de qualquer texto neste sentido pelo Senado. Assim, os dez artigos foram retirados do relatório e a Coalizão Direitos na Rede espera que o tema não retorne na Câmara e seja votado no afogadilho.

Avanços trazidos pela versão do PL 2630/20 aprovada no Senado

A interlocução com a sociedade civil e a academia também garantiu a inclusão de medidas importantes no relatório aprovado pelo Senado. A principal delas tem a ver com obrigações de transparência por parte das redes sociais e serviços de mensageria privada.

Pelo texto que chega a Câmara, as plataformas devem divulgar relatórios trimestrais com informações sobre o número total de medidas de moderação de contas adotadas em razão do cumprimento dos seus termos de uso, de ordens judiciais e em função desta lei, especificando as motivações, a metodologia utilizada na detecção da irregularidade e o tipo de medida adotada; o número total de contas automatizadas e de redes de distribuição artificial detectadas; o número total de medidas de identificação de conteúdo e os tipos de identificação, remoções ou suspensões que foram revertidas pela plataforma; médias de tempo entre a detecção de irregularidades e a adoção de medidas das plataformas em relação às contas e aos conteúdos; e atualizações das políticas e termos de uso e a justificativa para a sua adoção, entre outros (Artigo 13). Apesar das plataformas já divulgarem relatórios de transparência, isso ocorre em intervalos muito superiores, não trazem dados específicos sobre o Brasil e, tampouco, permitem uma análise sobre as medidas que as empresas digitais tem adotado no enfrentamento à desinformação.

O Senado também estabeleceu positivas obrigações de transparência em relação a anúncios e a conteúdos impulsionados nas redes (Artigos 6º e 14). Sabe-se que muita da desinformação que circula na Internet alcança um número significativo de usuários porque conta com altos volumes de recursos fomentando sua distribuição. Pelo texto, será possível identificar a conta responsável pelo impulsionamento ou anunciante, além de acessar informações de contato do responsável pela conta. Também será possível identificar quando se está interagindo com uma conta automatizada (Artigo 6º), dando maior transparência ao funcionamento de robôs na rede. Daí a importância preservação, pela Câmara, desses pontos aprovados pelo Senado.

O mesmo vale para todo o capítulo relacionado à atuação do poder público (Artigos 18 a 24). O texto estabelece, por exemplo, que as contas de redes sociais utilizadas por entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, e também de agentes políticos sejam consideradas de interesse público, submetidas, assim aos princípios da Administração Pública. Tais contas não poderão restringir o acesso de qualquer cidadão às suas publicações. O poder público deverá ainda divulgar dados sobre a contratação de serviços de publicidade ou impulsionamento de conteúdo por meio da internet; coibir a destinação de publicidade para sítios eletrônicos e contas que promovam atos de incitação à violência contra pessoa ou grupo; desenvolver ações de educação para o uso seguro, consciente e responsável da internet; e, em especial o Ministério Público e o Poder Judiciário, criar áreas especializadas para responder aos danos coletivos resultantes de condutas de que trata a Lei.

Também vemos como medidas fundamentais de combate à desinformação a proibição, trazidas no texto do Senado, a vedação ao uso e comercialização de ferramentas externas aos serviços de mensageria privada voltadas ao encaminhamento em massa de mensagens (Artigo 11) e a necessidade de consentimento prévio do usuário para sua inclusão em grupos de mensagens, listas de transmissão ou mecanismos equivalentes de encaminhamento de mensagens para múltiplos destinatários (Artigo 9º)

Riscos remanescentes do PL 2630/20 a direitos fundamentais

Apesar dos avanços na redação final do relatório aprovado no Senado, o PL das fake news ainda mantém mudanças legais com sério potencial de prejuízo a direitos fundamentais, como a privacidade, a proteção de dados, o acesso à Internet e a liberdade de expressão. A análise na Câmara dos Deputados será fundamental para corrigir tais problemas, que persistem no texto. Destacamos abaixo os principais deles:

1) Manutenção do conceito de conta identificada (Art. 5º, inciso I)  O texto mantém a definição como “a conta cujo titular tenha sido plenamente identificado pelo provedor de aplicação, mediante confirmação dos dados por ele informados previamente”. Por mais que o texto tenha deixado de vedar o funcionamento das contas não identificadas, essa definição vincula as obrigações de identificação presentes nos artigos 7º e 8º do relatório, objeto de pedido de supressão pela Coalizão Direitos na Rede.

2) Identificação em massa (Artigo 7º) – O dispositivo de identificação em massa foi flexibilizado no Senado. Inicialmente, a coleta de dados de identificação seria obrigatória para todos os usuários que quisessem abrir uma conta em rede social ou serviço de mensageria privada. Após pressão sobre o relator, a identificação foi alterada para casos de “denúncias por desrespeito a essa Lei”, “indícios de contas automatizadas não identificadas como tal”, “indícios de contas inautênticas” e em caso de “ordem judicial”. Essa limitação, se importante pelo fato de não generalizar a coleta, ainda assim mantém a prática da identificação para um contingente significativo de usuários, sobretudo a partir de simples denúncias que poderão ser recebidas pelas plataformas – o que permite o abuso e massificação deste procedimento. Também foi mantido no relatório aprovado o “poder de polícia” às plataformas, obrigando-as a desenvolver medidas para “detectar fraude no cadastro e o uso de contas”. Como alertamos, esse dispositivo vai contra preceitos constitucionais e a Lei Geral de Proteção de Dados, que estabelece o princípio da coleta mínima dos dados necessários para uma finalidade.

3) Rastreabilidade em massa (Artigo 10º) – Essa previsão sujeita o conjunto da população a alto risco diante de possíveis requerimentos abusivos de informações pessoais, medidas de mau uso de seus dados pelas empresas e vazamentos. Terão seus dados guardados obrigatoriamente pelos aplicativos todas as pessoas que, por razões legítimas ou involuntárias, participem das cadeias de compartilhamento de conteúdos, como jornalistas, pesquisadores, parlamentares e quaisquer cidadãos que, eventualmente, repassem uma postagem a fim de denunciá-la. Todas as mensagens que circularem mais nos aplicativos de mensagens serão consideradas suspeitas a priori e rastreadas, sem que haja um indício de ilegalidade. Assim, caso haja um processo judicial envolvendo esses conteúdos, caberá às pessoas envolvidas o dever de explicar, a posteriori, sua não relação com as indústrias de disseminação de desinformação que o PL pretende atingir. Trata-se de grave violação ao princípio da presunção de inocência e que, sim, pode impactar no exercício da liberdade de expressão e comunicação nos aplicativos de mensageria privada.

4) Riscos à liberdade de expressão (Artigo 12º) – A redação votada pelo Senado incorporou pontos sobre devido processo na moderação de conteúdos por parte das plataformas, como mecanismos de notificação e direito de defesa dos usuários, que são importantes para o exercício da liberdade de expressão. Mas incluiu de última hora, sem diálogo com as organizações preocupadas com o texto, dois parágrafos (5º e 6º) cujas redações, vagas e confusas, podem trazer riscos. O parágrafo 5º, por exemplo, trabalha com as idéias de “imitação da realidade” e de indução “a erro acerca da identidade de candidato a cargo público”. Já o parágrafo 6º diz que a decisão do procedimento de moderação deverá assegurar “ao ofendido o direito de resposta na mesma medida e alcance do conteúdo considerado inadequado”. A figura do ofendido não existe no PL e traz enorme dificuldade de delimitação, com previsão superior inclusive à honra, que existe no ordenamento brasileiro. O direito de resposta, que é constitucional, deve ser baseado em decisão judicial. Do contrário, tal medida será terceirizada às plataformas, que poderão receber um conjunto de demandas e passarão a ter que analisar mensagens para identificar “conteúdos inadequados”. Além disso, para o cumprimento do dispositivo, as plataformas teriam que guardar mais dados dos usuários, algo que também viola os princípios da LGPD. É fundamental, portanto, que a Câmara aprimore o dispositivo, mantendo os aspectos de devido processo e reparação por danos decorrentes da moderação feita pelas plataformas, mas retirando do texto os referidos parágrafos.

5) Código de conduta para redes sociais e serviços de mensageria submetido à aprovação do Congresso Nacional (Artigo 25, II) – A redação aprovada no Senado atribui ao Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar um código de conduta para redes sociais e serviços de mensageria, conferindo status de norma infralegal a um documento a ser adotado e aprovado pelo Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet – criado justamente para ser um órgão técnico e autônomo. Tal submissão ao Congresso possibilitará eventual revisão das decisões do Conselho, ingerência política no seu funcionamento e, consequentemente, no das redes sociais e aplicativos de mensageria privada.

6) Inconstitucionalidade para a escolha de representantes do Conselho (Artigo 26, §4º) – Ao vetar que conselheiros sejam pessoas vinculadas ou filiadas a partido político, o dispositivo viola a Constituição, que garante liberdade de associação para fins lícitos. Tal redação inviabilizaria a nomeação, por exemplo, dos próprios representantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ao Conselho. O parâmetro adotado para vedar a nomeação é bastante restrito e é divergente, inclusive, com aqueles adotados para a nomeação em cargos públicos.

7) Aumento da exclusão digital no cadastramento de usuários de telefones pré-pagos (Artigo 34) – O texto que saiu do Senado altera a previsão da lei de cadastramento de celulares pré-pagos para substituir a possibilidade alternativa pela obrigação de apresentação conjunta de documento de identidade e número de CPF no cadastro de chips. Como temos visto durante a pandemia, para fins de acesso ao auxílio emergencial, exigir a apresentação dos dois documentos para a obtenção de um número pré-pago pode impactar diretamente no exercício do direito à comunicação destes cidadãos. Trata-se de uma medida desnecessária, excessiva e onerosa a brasileiros que não possuem as duas documentações regularizadas. Adicionalmente, o texto determina nova regulamentação sobre o cadastramento de usuários de telefones pré-pagos. A redação deve ser alterada para permitir um documento ou outro.

A Coalizão Direitos na Rede acredita no compromisso do parlamento brasileiro com o enfrentamento à desinformação, que tanto afeta a vida da população e a democracia em nosso país. Mas reafirma a importância de que qualquer legislação que tenha este objetivo não resulte na adoção de dispositivos excludentes, vigilantistas, criminalizadores e que ameacem nosso direito à liberdade de expressão. Tampouco, que traga em seu escopo dispositivos que dêem ainda mais poder para as plataformas digitais, seja por meio de obrigações de análise de conteúdo, seja via determinações de entrega de ainda mais dados pessoais dos usuários para seu controle.

Reafirmamos nosso interesse e disponibilidade de seguir em diálogo, agora com os deputados e deputadas, de modo a garantir que o Brasil aprove uma lei que de fato combata a desinformação, mas sem violar direitos dos cidadãos e cidadãs.

Brasil, 06 de julho de 2020