Tecnologia e Representação: substitutos ou complementares?

24 jul de 2015, por OKBR

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Heloisa Pait durante o debate. Crédito da foto: Isabela Meleiro

Heloisa Pait durante o debate. Crédito da foto: Isabela Meleiro

Para o debate no Centro Cultural Vergueiro, preparei o texto curto abaixo, que é basicamente uma defesa da política, com suas instituições, com seus procedimentos, com suas pessoas, com os conflitos, com os partidos, e com a cultura política que cada povo tem. Para aproveitarmos todo o potencial que os novos meios de comunicação oferecem à política, é preciso ter em mente de modo claro o que é a democracia: é o modo como decidimos decidir. Ela não pode ser superada, nem resolvida. Pois é apenas um modo de decisão. Os conflitos sempre estarão ali, independentemente de sermos ágrafos ou digitais. O encontro com o outro em sua diferença não é apenas cultural; é político, ou seja, temos divergências sobre como a vida deve ser regrada, e qualquer consenso é provisório e incompleto.

Claro que a política cansa, decepciona, impulsiona para aventuras fora dela. E, nesse afã em querer fugir dela, a tecnologia pode aparentemente oferecer um escape. Ou uma nova consciência pode parecer indicar um caminho. Mas felizmente não há no horizonte uma consciência que traga harmonia, nem uma tecnologia que elimine a negociação. Sempre teremos desavenças, e isso é bom. A tecnologia pode apenas nos ajudar a fazer dos conflitos algo mais alegre, dos consensos algo mais produtivo. O ponto de partida é aceitar nossas culturas políticas e nossas instituições, e a partir daí apoiar a transparência, a participação e reformas que surjam desse diálogo – tais como o voto distrital –, aprimorando as instituições e enriquecendo nossa cultura.

Foi uma experiência fascinante debater com Marina Silva, com sua biografia extensa e seus milhões de votos, assim como com Santiago Siri, com seu questionamento jovem da política argentina. Mas o depoimento do vereador Ricardo Young, do idealizador do debate Ariel Kogan e do mediador Milton Jung me tocaram fundo. Eles deram seu testemunho sobre o uso de novas tecnologias no exercício cotidiano da política. Falaram sobre como a experiência da representação, que é uma experiência humana, um laço entre pessoas, se enriquece com a conversa digital. Digital? Sim, digital. Não porque a banda larga tenha alguma propriedade mágica. Mas apenas porque ela é, hoje, um modo de estarmos juntos.

Então aqui vai o texto preparado anteriormente ao debate:

Sempre depositamos nossas maiores aspirações na última invenção disponível. A alfabetização em massa traria racionalidade, o telégrafo a paz, a televisão a integração nacional, e a internet a democracia planetária. É importante então lembrar que um computador móvel é apenas uma versão mais sofisticada de um caderno; um tweet é um telefonema dado a várias pessoas ao mesmo tempo; uma filmadora equivale a um bom contador de histórias e assim por diante. São todos instrumentos para registro, cálculo ou conversa.

Esses instrumentos mudam um pouco o modo como fazemos as coisas, mas ainda temos os mesmos medos, desejos e necessidades, individualmente ou em grupo. Como decidir o que fazer? Quem vai decidir? E quem vai fazer? E se fizer outra coisa, como corrigimos? E quem corrige? Essas são as perguntas da vida política, que não mudam com a tecnologia. Por isso é importante definir objetivos para depois pensar sobre como novos meios de comunicação podem nos ajudar. Especificamente em relação ao legislativo, o que queremos?

Queremos questionar as estruturas políticas? Não. Queremos preservar a democracia representativa. As sociedades mais justas e pujantes são aquelas onde há consenso a respeito dessas instituições, que incluem partidos, parlamentos, grupos de pressão, liberdade de expressão e alternância de poder. Ou seja, há consenso em divergir.

Queremos aprofundar o debate público? Não precisamos. Já há inúmeras arenas de discussão, seja na sociedade civil, na universidade e nas artes, na imprensa e na internet, e no dia-a-dia social. Precisamos sim defender o que já temos, com a defesa de jornalistas e com a proteção à liberdade de expressão.

Queremos transparência nas câmaras e assembléias? Sim, do mesmo modo que em outras instituições públicas. Uma burocracia inchada e ineficiente atrapalha o próprio trabalho legislativo e acaba causando distorções no processo de renovação, muito semelhante a outros órgãos com seus concursos viciados. Já o conhecimento dos processos legislativos em suas várias etapas deve ser de fácil acesso não só para político e o lobista, mas para o cidadão comum. Também é importante saber quem são os representantes, como pensam, como votam, que princípios seguem, a que grupos pertencem e se opõe, com que grupos podem negociar e em que base o fazem.

Queremos participar das decisões? Depende. Não, se estivermos falando de participação plebiscitária, com decisões sendo tomadas com desrespeito à Constituição, ao regimento do legislativo, sem argumentação nem coerência. O tempo e a negociação são partes da boa política; deslegitimar isso é deslegitimar a própria democracia.

Mas sim, se essa participação se der através de diálogo com os representantes eleitos. Os novos meios – e os tradicionais – já revelaram o quanto estamos distantes deles. Agora precisamos de instrumentos para travar diálogo com eles, facilitando consultas por parte do parlamentar, que pode ter a disposição uma gama de experiências e conhecimentos, e também dando a ele a oportunidade de explicar suas posições e suas opções em negociações com outros representantes. Ou seja, adensando a relação de representação.

Queremos democratizar os partidos? Sim, é fundamental que os partidos se abram, se democratizem, se modernizem inclusive tecnologicamente. Por alguma razão, esquecemos dos partidos nessa discussão toda, e tentamos fazer com que a tecnologia substitua uma instituição milenar, que é o grupo político. Entre os índios Kraô, por exemplo, um grupo lidera a tribo no verão, outro no inverno. Na democracia, os partidos é que têm o papel fundamental de fazer a mediação entre as visões de mundo que se encontram na sociedade e o Estado. De uma forma ou outra, sempre nos dividiremos em grupos.

No Brasil, onde não temos voto distrital e os candidatos dependem mais do apoio partidário (através de fundos públicos e de grandes doadores) do que popular para obter votos, o representante eleito serve muito mais ao líder partidário do que a quem o elegeu. E aí a contradição: queremos com a tecnologia forçar uma relação com o eleitor e nos surpreendemos com a indiferença dos políticos, leais aos seus caciques – com louváveis exceções!

Enquanto isso, deixamos os partidos nessa zona sombria: quem são os filiados e o que pensam? Quais os processos de deliberação? Quem participa deles? Como as candidaturas são escolhidas? Quem decide sobre alianças, e com base em quê? Nós nos contentamos com as insinuações que aparecem na imprensa escrita e deixamos de lado esse importante elo da democracia. De dentro, os políticos pouco têm feito para arejar os partidos. A tecnologia pode ajudar os partidos a se aproximarem da vida social e, consequentemente, oferecerem melhores candidatos nas eleições, mais afinados com o eleitorado.

Um desejo que está solto aí na sociedade, e que explica as grandes manifestações de rua, é o desejo de atuar, de pertencer a grupos que tomam parte de decisões públicas. Não é só a minha opinião individual que eu quero que seja considerada – as enquetes não bastam. Quero fazer parte de um grupo que pensa, que debate, que tem conflitos, que decide, que escolhe líderes, que propõe uma visão para o país ou para a cidade. Quero estar em contato, por exemplo, com outros eleitores do deputado Jacyntho de Souza ou com os apoiadores do partido PRP da minha cidade. Quero fazer política e não apenas opinar. A tecnologia deve ajudar na democratização desses grupos, nos partidos ou nos mandatos, servindo à política e não buscando substitui-la.